Nesta segunda-feira (25), Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, um evento em Nova York marca o lançamento mundial de uma campanha promovida pela ONU Mulheres, que se estenderá até 10 de dezembro. Alinhado à iniciativa, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) lança a campanha “Não é normal”, com atividades de prevenção da violência de gênero previstas até 8 de março, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher.
A campanha do STJ – que no início do ano firmou parceria com a ONU Mulheres para promover ações voltadas para a igualdade de gênero – vai se desenvolver sob a coordenação do Programa Equilibra, lançado em 11 de março pelo presidente do tribunal, ministro João Otávio de Noronha. Luzes laranja – cor-símbolo da campanha mundial – estarão iluminando a fachada do STJ a partir da noite desta segunda.
Nos últimos anos, segundo a ONU, as vozes de sobreviventes e ativistas, por meio de campanhas como #MeToo, #TimesUp, #Niunamenos, #NotOneMore, #BalanceTonPorc e outras, destacaram que a questão da violência de gênero não pode mais ser ignorada.
De acordo com a organização internacional, esse tipo de violência impacta a vida de uma em cada três mulheres e meninas pelo mundo.
Uma pesquisa da Secretaria de Jurisprudência do STJ destacou o entendimento da corte em diversos temas relacionados à violência de gênero, incluindo interpretações sobre o crime de feminicídio e a aplicação dos dispositivos da Lei Maria da Penha.
Duplamente qualificado
O feminicídio passou a ser uma circunstância qualificadora do homicídio após a edição da Lei 13.104/2015, que alterou a redação do artigo 121 do Código Penal. Alterou também o artigo 1º da Lei 8.072/1990 para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
O feminicídio é o homicídio cometido contra a mulher por motivo relacionado à sua condição de mulher – ou seja, um crime praticado em razão do gênero.
Com a vigência da lei, o STJ foi provocado a se pronunciar sobre alguns aspectos da nova regra. Um dos questionamentos foi sobre a possibilidade de um crime de feminicídio ser considerado também homicídio qualificado por motivo torpe.
Segundo o ministro Nefi Cordeiro, a coexistência das qualificadoras do feminicídio e do motivo torpe é possível, e não implica dupla punição pela mesma circunstância (bis in idem), pois o feminicídio tem natureza objetiva, enquanto a qualificadora do motivo torpe é de caráter subjetivo.
“É devida a incidência da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto, natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto a primeira tem natureza subjetiva e a segunda, objetiva” (HC 440.945).
Sobre o mesmo assunto, o ministro Felix Fischer afirmou que o exame do animus do agente não é objeto de análise, e a qualificadora do feminicídio possui natureza objetiva, “pois incide nos crimes praticados contra a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita” (REsp 1.707.113).
Posição uníssona
Em outra ocasião, o ministro Jorge Mussi refutou os argumentos da Defensoria Pública no sentido de que ambas as qualificadoras seriam subjetivas, reafirmando uma posição que é uníssona nos colegiados de direito penal do STJ.
No HC 430.222, a Defensoria Pública sustentou que haveria incompatibilidade entre as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, uma vez que ambas seriam subjetivas e se refeririam à motivação do crime.
Para a DP, a motivação torpe consistente no inconformismo pelo término do relacionamento amoroso seria elemento necessário ao preenchimento da qualificadora do feminicídio, razão pela qual a manutenção de ambas as circunstâncias configuraria indevido bis in idem.
“Quanto ao ponto, é imperioso destacar que, ao contrário do que consignado na impetração, as qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio não possuem a mesma natureza, sendo certo que a primeira tem caráter subjetivo, ao passo que a segunda é objetiva, não havendo, assim, qualquer óbice à sua imputação simultânea”, resumiu o ministro.
Jorge Mussi citou o jurista Guilherme de Souza Nucci, segundo o qual o feminicídio possui caráter objetivo, já que está ligado ao gênero da vítima, e o agente não mata a mulher somente porque ela é mulher, mas o faz por ódio, raiva, ciúme, disputa familiar – motivos variados que podem ser fúteis ou torpes.
Coabitação
Na tarefa de interpretar a Lei Maria da Penha, um dos questionamentos enfrentados pela corte foi sobre a necessidade de coabitação para a caracterização da violência tratada em seus dispositivos.
Em um dos casos analisados, a defesa afirmou que a Lei Maria da Penha não poderia ser aplicada, pois o acusado e a vítima estavam separados de fato havia 13 anos. Divorciados nos últimos três anos, permaneceriam ligados apenas por questões patrimoniais, sem coabitação.
Segundo a ministra Laurita Vaz, relatora, o contexto da violência doméstica abrange qualquer relação íntima de afeto, dispensada a coabitação.
Ela destacou que, no caso, a situação que deu ensejo à aplicação das medidas protetivas decorreu de anterior relação íntima de afeto entre o acusado e a vítima, sua ex-mulher.
“Dispõe o inciso III do artigo 5º da Lei 11.340/2006 que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”, destacou.
A ministra citou a Súmula 600 do STJ, na qual esse entendimento está consolidado. “Dessa forma, sendo o paciente e a vítima ex-consortes, pode-se concluir, em tese, que há entre eles relação íntima de afeto para fins de aplicação das normas contidas na Lei Maria da Penha, não havendo necessidade de coabitação” (HC 477.723).
Ciúme de você
Ao julgar o AREsp 1.441.372, a Sexta Turma concluiu que o ciúme é de especial reprovabilidade em situações de violência de gênero, por reforçar as estruturas de dominação masculina – uma vez que é uma exteriorização da noção de posse do homem em relação à mulher –, e é fundamento apto para aumentar a pena-base.
Nesse caso, a Defensoria Pública sustentou que a questão do ciúme constitui “referências vagas e genéricas” que seriam inadmissíveis para o aumento da pena-base.
O ministro Rogerio Schietti Cruz mencionou trechos do acórdão recorrido, segundo os quais o ciúme não legitima a prática de lesões corporais contra a ex-companheira – ao contrário, caracteriza-se como motivação repugnante, em nítido sentimento de propriedade.
Outros temas
Alinhado à posição do Supremo Tribunal Federal (STF), o STJ entende que a ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública incondicionada (Pet 11.805).
A jurisprudência também se definiu pelo cabimento da prisão preventiva como forma de garantir a execução de medidas de urgência, nas hipóteses em que o delito envolver violência doméstica (RHC 117.304).
Para o tribunal, a palavra da vítima tem especial relevância nos casos de violência doméstica, uma vez que geralmente ocorrem sem a presença de testemunhas (RHC 115.554).
Nesses crimes, o STJ considera ainda que não é possível aplicar o princípio da insignificância, devido à reprovabilidade da conduta (REsp 1.743.996).
No entendimento do tribunal, o sujeito passivo da violência doméstica tratada na Lei Maria da Penha é sempre a mulher, mas o sujeito ativo pode ser homem ou mulher, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade, além da convivência, com ou sem coabitação (AREsp 1.439.546).
O STJ aprovou ainda duas outras súmulas sobre a Lei Maria da Penha.
A Súmula 536 afirma que a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito dessa lei.
Já a Súmula 588 estabelece que a prática de crime ou contravenção penal contra a mulher no ambiente doméstico, com violência ou grave ameaça, impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Fonte: AASP – Associação dos Advogados do Estado de São Paulo